Como seria ter um irmão autista numa época em que pouco (ou nada) se sabia sobre isso?
Como seria ter um irmão e, ao mesmo tempo, não tê-lo?
"Tenho 5 anos, você tem 3. Eu sei ler, você não sabe falar. Eu sei amarrar meus sapatos, você não consegue calçar uma meia. Você ainda dorme no berço.
Não pode vir comigo. Quanto mais crescemos, mais nos afastamos."
"Quando vamos ao supermercado e você fica sentado no carrinho, mulheres param meu pai para dizer que você é simplesmente lindo."
"É como um truque, essa beleza que seduz tanto professores, especialistas, psiquiatras e até os familiares (...)"
"Mas você não me engana. É meu irmão. E meu rival. E posso sentir o ambiente se inclinando para você sempre que entra nele, toda atenção e amor de nossos pais escoando em sua direção, sem nunca ser retribuído. Você possui uma gravidade desproporcional para o seu tamanho. E talvez essa indiferença com sua própria importância o torne ainda mais amado. Estou aprendendo que não posso competir com você; apesar de ser mais velho, maior, mais esperto, mais rápido, vou perder todas as disputas pelo tempo e pela atenção de nossos pais."
"Noah é a razão que nos fez mudar de Nova York. Por causa dele, nossa casa é uma eterna bagunça, nossa mobília está sempre suja, o veludo do sofá é duro de saliva seca. Ele é a razão pela qual nossos lençóis têm os cantos desfiados, onde ele os mastigou, os livros não têm todas as páginas, porque ele as arrancou, meus tanques de plástico estão amassados e meus soldados da infantaria (dos quais ainda gosto muito, mesmo aos 14 anos) têm marcas de dentes, e nossas janelas estão sempre embaçadas com o resíduo de seu cuspe. Ele é o motivo pelo qual não podemos sair de férias, por que ninguém pode dormir até tarde, por que não posso me sentar para assistir à tevê com um saco de batatas fritas, porque, se me vê, ele quer o pacote inteiro. Tudo sempre gira em torno de Noah, por causa de Noah. Sem dizer uma única palavra, ele dita os termos de nossa vida.""Não conheço Noah. Suspeito que é impossível conhecê-lo. Mas ele segue sendo o centro de minha vida.
Eu o odeio por isso.
Se pudesse, nunca escreveria sobre ele, não falaria sobre ele, diria a todos que me perguntassem que sou filho único.
Mas ele é meu irmão.
Tenho pavor dos telefonemas de meus pais. Ele atacou outro cliente. (...) Foi espancado. Tem um olho roxo, um dente quebrado, outra cicatriz sem explicação. Esses telefonemas me lembram. Eles me fazem sentir impotente porque Noah é impotente.
(...) sinto a realidade de Noah invadindo-me e o peso da preocupação com ele retornando. A menos que me disponha a afastar-me, simplesmente fechar meu coração para ele, compreender por que ele está onde está é tão inútil quanto calcular a temperatura exata enquanto você está morrendo congelado. É informação, mas é inútil."
Sinto-me só. Karl Taro Greenfeld, Editora Planeta, 2009